Saltar para: Post [1], Pesquisa e Arquivos [2]

Viagens Pela Vida

Poesia e coisas do coração

Poesia e coisas do coração

Viagens Pela Vida

04
Dez18

MERGULHO NO ABSOLUTO

Fernando Nunes

Há o remoinhar harmónico de oceano quebrado no recôncavo rochoso escavado pelos séculos de onda após onda. E o mar já sereno, vem num último impulso de força remexer os seixos redondos da enseada. É um vaivém de chocalhar que me embala a mim neste berço silencioso de pura luz oiro que cai a pino sob oceano abrindo-se em mil fulgores. Estou sentado, palmas das mãos mais atrás do tronco. Os seixos pequenos e suaves, sinto –os nas mãos, no rabo e levemente nos pés. Olho em redor,, oceano, rochas, seixos e não há areia.

 

Levanto-me, caminho um pouco desengonçado com pés sob pedras redondas até alcançar a falésia a poucos metros do mar e debruço-me abeirando a boca da água que se precipita da alta escarpa numa espiral de fresca e cristalina bica de água. Observo a parede rochosa de alto a baixo, não sei quantos metros terá, mas é sublime. Reparo numa laje lisa e volto a sentar-me.

 

Foi ontem ao entardecer que chegámos à praia do Almograve. Depois de o automóvel a rebocar o barco ter percorrido a ruela principal da aldeia de casas com janelas curiosas, dirigimo-nos pela estrada de terra batida e, finalmente, destino alcançado.

 

A azáfama de um dia de trabalho na capital e a memória diluía-se no meu corpo cansado. Que corpo? Aonde o delinear limitado pelo físico e pelos arquivos da memória? Não sei, nem sabia, nem pensava.

 

As ondas bailavam nas rochas multifacetadas de formas que a bruma espumosa ora ocultava, ora serpenteava estrias escorridas esbranquiçadas ou leve cor de café areia. E eu vislumbrava todo o cenário, desde as vagas trépidas uns poucos metros mais adiante e mais a baixo, o sol ardia no horizonte num fogo que se expandia sob superfície oceânica e me enchia  os olhos de deslumbramento e o ventre derretia-se, derretia-se na terra, derretia-se e escorria pelas rochas até ao mar, até além oceano. E toda a memória dissolvida no único instante, todo o passado, todos os sonhos da infância de um dia mergulhar no fundo dos oceanos, tinham-se agregado naquele único momento, mas sem deixar rasto de passado. Não poderia dizer, “Materializei um dos meus sonhos de tenra infância.”, não havia infância naquele tempo atrás o tempo, e a vida estava leve, tão subtil que mesmo inconscientemente devo-me ter interrogado se estava a sonhar, ou será existência somente quimera?

 

“Eh pá! Fernando, dá aqui uma ajuda a montar a tenda, estás a dormir ou a sonhar?”.

 

“Bravo, nós fazemos o trabalho, lembra-te que é a primeira vez que o Fernando está aqui.” – Afirmou o Amílcar ao Bravo.

 

Comemos qualquer coisa com o rabo assente no chão da tenda e os pés cá fora na terra. Mastigávamos absortos no silêncio ritmado no vaivém de bailado de oceano que a noite ia obscurecendo nos últimos lampejos de claridade fina como fio prateado esticado ao horizonte.

 

“Dorme bem, Fernando,.”, - Disse o Amílcar entre risos – “Não tenhas insónias, porque aqui não existem tubarões, isto não é África.”.

 

Silêncio.

Devia estar entre o estado de vigília e sono, a memória a reaparecer intacta e a fluir desde a infância, ali ao rumor do mar e do vento.

 

Reencontro-te, reencontro-me neste relembrar fresco  como brisa marinha de sussurros melódicos.

 

As primordiais imagens que se solidificaram em memória para delinearem a infância e efetivamente criarem identidade fluem-me com abundância e semelhança como se situassem no espaço num determinado ponto em que na consciência houve a própria criação desse ponto de criação de identidade, de um EU que começava as construções imaginárias de separação, de o eu e o outro, de meu e teu, de eu e o mundo. Porém, creio ter sido um processo subtil e às vezes talvez confuso. Na época com cerca de 4 anos de idade, meus pais adaptaram como habitação o cimo de um prédio na Rua ilha do Príncipe, as águas-furtadas transformadas num pequeno apartamento cuja varanda se debruçava sob uma ribanceira situada a poucos metros do edifício. Da varanda vislumbrava as árvores do Miradoiro do Monte Agudo e, do lado direito afunilado entre prédios e telhados um excerto ,  do rio Tejo.

 

É nesse cenário Fantasmagórico que as imagens fluem no relembrar, ora rodopiam, ora estagnam e lá reapareço eu, surge a criança com 4 anos de idade em que ainda não existem mundos completamente separados, do real e o irreal.

 

Primeiro foi o tilintar agudo procedido de vozes e o som mais grave da porta a fechar que me fez despertar das fantasias que inventava suspensas nas árvores, no céu pálido e fresco desse final de tarde.

 

Corri pela varanda a fora, entrei em casa e agarrei-me às pernas do meu pai, “Pai, o que é esta caixa que o senhor tem aí?”.

 

Meu pai abraçou-me e continuou a dialogar com a personagem que pousava sobre a mesa o grande caixote de papelão.

 

“Fernando, vem aqui para a cozinha para perto da mãe.”.

 

Interroguei minha mãe sem sucesso, que me ia sossegando a curiosidade do que revelar-me-ia o caixote que me começava a surgir na imaginação como algo mágico.

 

Por fim, novamente o rangido da porta a abrir-se, as vozes e silêncio, mas havia um outro remoinhar de ruídos e vozes estranhas que não se identificava com o senhor que, aliás, acabara de despedir-se do meu pai e sair de casa.

 

“Fernando, Beatriz, venham cá.”.

 

“Anda mãe.”.

 

Atrelado à mão da minha mãe corri até entrar na sala e fiquei estagnado a olhar para aquele retângulo que eu já tinha visto algumas vezes na casa de amigos dos meus pais.

 

“É uma televisão, Fernando.”.

 

Apesar do encantamento inicial, continuava a seduzir-me mais a varanda do que a televisão, porém, a TV era a minha fonte de inspiração para na varanda, fantasiar, sonhar e ter a certeza do que afirmava aos meus pais.

 

“Mãe, mãe, anda cá ver, depressa, depressa!”.

 

“Sim?”.

 

“O que é que os senhores estão a falar? Não entendo nada?”.

 

“Os senhores são de outro país, falam de uma forma diferente de nós, comunicam-se com uma linguagem diferente da do nosso país…”.

 

“Sim, mãe, sim, mas tu entendes o que eles dizem?”

 

“Não entendo, filho, mas a mãe pode ler para ti. Estás a ver aquelas letras ali, dizem o que os senhores estão a falar.”.

 

“Sim, mãe, e o que é que eles dizem? Depressa eu quero saber.”.

 

A minha mãe explicou-me que o cenário passava-se na Austrália, na grande barreira de coral. Por fim, afirmei que um dia quando fosse grande eu também ia mergulhar no fundo do mar. A minha mãe acarinhou-me os longos caracóis do cabelo e disse-me que quando eu crescesse havia outras coisas para eu fazer menos perigosas do que andar a mergulhar no oceano.

 

“Não mãe, eu não quero outras coisas, eu quero mergulhar, eu vou ter muito cuidado, mãe, tá bem, não fiques assustada, mãe.”.

 

E nesse espaço ausente de tempo em que a vida está inteira a cada momento, a cada novo ciclo de respiração a visão do que estava predeterminado para minha vivência, surgia-me naturalmente e continuou a acompanhar-me na infância, na adolescência onde eu comecei a rebuscar nas livrarias alguns escritos sobre mergulho desportivo e, na Rua Nova de Almada, a ficar esquecido a vislumbrar a montra da Socidel com os equipamentos de mergulho.

 

O Rumor do mar embala-me neste berço de absoluto, de sentir-me envolto num mistério imenso cheio de graça, de um mistério que é irrevelável, mas que aqui nesta noite não precisa de nenhuma revelação porque tudo está bem, porque tudo é o que é. Meus companheiros já dormem, dou meia volta, fecho os olhos e ainda imagino as estrelas lá fora, por cima da lona da tenda.

 

Desperto com o Amílcar a aconchegar-se no saco-cama, “Ainda é cedo, o sol está a começar a nascer, vê se dormes mais um pouco porque o dia vai ser intenso.”.

 

Fico imóvel a escutar o alvorecer que traz melodia com aroma salgado e peganhoso. O Amílcar cerrou as pálpebras e voltou a adormecer com uma respiração quase sincrónica com a do Bravo.

 

Deixo-me deslizar para fora do saco-cama, corro o fecho e impulsiono-me para cima. É súbito, vasto e absoluto agora. Agora neste instante que o cenário do alvorecer me dilata a  consciência como se eu estivesse ali no horizonte onde há fogo de vermelho intenso expandido até ao remoinhar das onda nos rochedos, como se eu estivesse ali no infinito, ali e aqui… Dou alguns passos, atravesso a estrada de terra batida e abanco-me na rocha alguns metros mais elevada que o espumar do Mar fatigado a esmorecer na sua essência de oceano íntegro.

 

Que hora são estas? Estas horas de eternidade que me rebocam até aos meus 12 anos de idade, que o aroma angustiante de éter pulveriza a atmosfera como se conseguisse dispersar a maresia.

 

Foi tudo tão rápido, eu quero que seja tudo muito rápido, veloz neste recordar que é traumático e, simultaneamente, libertador porque talvez me afirme que afinal sempre estive em sincronia com o ritmo, o fluxo da existência.

 

Relembro o chiar do elevador, o quarto, a minha mãe e a enfermeira a vestirem-me o pijama, o meu pai a abraçar-me, depois a mão da minha mãe a agarrar a minha mãe e os seus passos ao lado da marquesa que me levava para o bloco operatório…

 

“A mãe gosta muito de ti, a mãe ama-te, vai correr tudo bem.”.

 

Sinto o carinho dos beijos da minha mãe aqui nestas minhas faces inundadas de lágrimas e de humidade de oceano e no lembrar o ruídos das portas do bloco operatório a balançarem até estagnarem. Depois Os médicos e enfermeiros a circundarem-me num ritual que me amedrontava no meu íntimo de criança, mas subitamente o mundo esvaneceu-se e, no próximo instante, já eu ia a caminho do quarto com o mundo a tornar-se sólido, palpável ao ritmo que despertava da anestesia geral.

 

Ainda aqui estou com o oceano alerta como se murmurasse uma canção de liberdade só para mim. Sorriu, limpo os olhos às palmas das mãos e respiro profundamente o episódio narrado devia já ter terminado, mas a existência é incerta, o próximo segundo, instante poder-se-á revelar deveras diferente do que imaginamos. Recomeço o pranto para o oceano, para o absoluto, para o infinito a prendar-me já com um sol doirado debruçado do horizonte, e as memórias vêm até mim novamente.

 

Oito dias já se tinham passado desde o dia da cirurgia, provavelmente mais dois ou três dias e regressaria ao aconchego da minha casa.

 

O Médico fez uma careta engelhada ao tatear-me a barriga e chamou um enfermeiro que me levou a fazer uma radiografia. Depois de o médico ter visto o  exame chamou os meus pais à parte.

 

“Mãe, o que é que foi, a mãe está a chorar?”.

 

“Nada meu filho querido, tu vais ser que ser operado agora novamente, mas não é nada de grave, vai correr tudo bem, Deus vai-te ajudar.”.

 

Não tive tempo para raciocinar, a preparação para a cirurgia fez-se numa correria e eu vi os meus pais a desaparecerem no balancear das portas do bloco operatório.

 

Não devia ter acordado, não devia estar aqui a chorar defronte do mar, o prognóstico do anestesista era que eu não ia conseguir sobreviver a uma nova anestesia tão próxima da anterior, nessa época as anestesias gerais eram mais complicadas do que atualmente, “Rezem porque o vosso filho só se salva por milagre.” – foram as palavras do médico.

 

Eu acordei, regressei à vida, porém, continuava com uma infeção que não melhorava e os médicos continuavam a considerar as hipóteses de eu sobreviver muito escassas.

 

Quero o sol já aberto ao mar, a ressuscitar as falésias falecidas nas trevas da noite, quero terminar esta não sei o quê de terapia de choque que me faz reviver uma história, é isso aí apesar do peso das imagens arquivadas na memória, há nestas primeiras horas de luz uma leveza de sonho, de mistério, que me começa a surgir somente como história projetada num espaço, numa consciência ampla e livre. Há porém, momentos significativos para definitivamente libertar-me deste episódio.

 

Deitado na cama do hospital, imaginava muitas vezes que estava a mergulhar no oceano e, quando o meu pai me questionou o que eu queria que ele me comprasse quando regressasse a casa, respondi com convicção, “Umas barbatanas e uns óculos de mergulho.”.

 

Sim e eu regressei a casa e uma manhã fui com o meu pai à procura das barbatanas e dos óculos de mergulho. Sim, eu estou aqui numa pequena enseada do Cabo Sardão a relembrar memórias dentro de memórias, eu aqui tenho 17 anos de idade, eu aqui sentado ao computador a escrever esta crónica tenho 51 anos de idade. O que é o tempo? O que é o mistério? O que é a vida se não mais que este absoluto, este, “Está tudo bem.”, que sinto agora neste serenar que me sossega nos meus 17 anos de existência, este sossego, este silêncio e paz que se me foi revelando em alguns momentos abençoados da existência, em circunstâncias de felicidade, e em circunstâncias menos favoráveis a serenidade às vezes também surgia no fundo do poço quando eu pensava que ia explodir em desespero, em ansiedade, subitamente tudo serenava, tudo se silenciava, era uma paz “triste”, não alegre, mas era também o silêncio, a paz subjacente ao oceano, ao horizonte, a toda a existência.

 

Dos 12 aos 17 anos de idade houve acasos que são afinal o sincronismo perfeito do universo por detrás das circunstâncias que me guiaram até este exato momento. Não procurei um curso de mergulho, não procurei uma escola de mergulho, mas um dia O Amílcar que habitualmente costumava ir ao meu local de trabalho e, que nessa época, o nosso relacionamento era somente uma troca de cumprimentos, de palavras entre dois desconhecidos. Mas um dia os meus olhos iluminaram-se quando aos ouvidos me ecoaram as palavras mergulho, garrafas de ar comprimido, e ali estava o Amílcar a narrar uma das suas vivências de mergulho desportivo da época em que viveu em Moçambique. A falar entusiasticamente para a minha colega que estava na receção, não era para mim, no entanto por acaso eu ia a passar e eu estremeci porque tive a certeza que meu sonho de infância se ia materializar.

 

O Amílcar coloca-me com suavidade a mão no ombro, “Está tudo bem, Fernando?”.

Sorriu, levanto-me, vislumbro este oceano infinito e abraço o Amílcar em silêncio com terna gratidão.

 

 

Fernando Nunes

Mais sobre mim

Subscrever por e-mail

A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.

Arquivo

  1. 2019
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  14. 2018
  15. J
  16. F
  17. M
  18. A
  19. M
  20. J
  21. J
  22. A
  23. S
  24. O
  25. N
  26. D
Em destaque no SAPO Blogs
pub