RITO DE NATAL
Agora que relembro neste relembrar que vislumbra a memória não cá de dentro de um espaço confinado de um “eu” limitado, mas que vislumbra as recordações de um espaço mais aberto e livre como coração que a cada pulsação se vai abrindo à vontade para que todas as experiências sejam proveitosas tal qual como são… Enfim, embora o poema fale do menino esquecido e identificando-me com essa personagem de outrora cujo Natal traz-me tradições de uma aldeia da Beira Baixa em que na noite do dia 24 de Dezembro era ateado o fogo aos madeiros para que a fogueira ardesse noite dentro. O menino não era esquecido pelos vultos que à roda do braseiro em labaredas iam anunciando a chegada do Natal, porém o menino ficava esquecido de si mesmo não numa espécie de transe psicadélico de mundos fantasmagóricos. Era um esquecer-me de mim mesmo muito sóbrio, com os pés bem assentes na terra.
O fogo ardia alto brotando calor em contraste com a atmosfera fria, as pessoas brilhavam nítidas, alegres, sorridentes e bem expressivas à luz da fogueira tão intensa como se um pedaço do sol estivesse ali a ser consumido, mas num súbito algumas pessoas recuavam transmutando-se quase em sombras e eu ficava a ver e a interrogar-me muito subtilmente o que é que eram as sombras e as formas sólidas? E as risadas, as vozes mansas ou mais exaltadas tão expressivas, compactas e reais como se me vibrassem entre os dedos quentes pelo fogo, mas ao ritmo das fagulhas que subiam e estoiravam no ar gélido surgia uma voz rouca com olhos rasos de lágrimas que cantava uma melodia de boas novas. Então já não me pareciam as sonoridades assim tão concretas e palpáveis, a própria melodia ressoava como se viesse da obscuridade do pinhal ou de algum sítio misterioso longínquo e, simultaneamente, pulsava-me no ritmo do peito que subia e descia na minha respiração fria da noite e quente da fogueira.
As vozes iam ficando mais como ecos inexpressivos e os passos mais audíveis, mais puros porque pisavam a terra, o orvalho rasteiro encavalitado em algum mato ainda não crescido que os sapatos calcavam cuidadosamente porque a obscuridade ia-se convertendo em negrume denso. Ao virar a esquina do palheiro de paredes enrugadas de pedras de xisto, a frágil luminosidade que provinha das labaredas mais altas e ainda me conseguia oferecer perceção mínima dos que meus olhos iam esgravatando, instantaneamente sumiu-se.
Agora eu estava mesmo pequenino, encolhido algures não sei onde. Arremessei as costas de encontro à parede e levantei os olhos à imensa dimensão do firmamento, não havia coisa mais bela e mais grandiosa e mais misteriosa e mais sóbria do que a infinidade das estrelas e não vou acrescentar mais nada porque já foi tudo escrito, expressado sobre os astros que nos roubam o coração e nos tiram o fôlego.
Silêncio. Infinito. E nada para retirar, e nada para acrescentar, e nada para me interrogar, estava bem comigo mesmo e com tudo o que me circundava.
Que idade tinha eu? Em que ano se desencadeou essa vivência?
Espera, não quero o tempo, nem mesmo todas as imagens arquivadas na memória individual que delinearam esta personagem que está aqui a escrever, quero só o espaço, o espaço de criatividade de onde brota a escrita, donde brota a própria criação… Que vou designar de presença serena e infinita.
“Fernando, Fernando??!!”.
A voz da minha mãe a chamar-me à realidade da minha identidade limitada em memórias, em um físico, porém, mesmo ao regressar para próximo da minha mãe e da fogueira, a voz da minha mãe surgia-me como se fosse simultaneamente a voz de todas as estrelas. Não, não era nenhuma experiência mística, nenhuma experiência de júbilo. Somente estava ali, sereno como presença infinita, provavelmente mais “identificado” com esse mistério de ser infinito, de sentir-me o palco e não uma personagem do grande palco cósmico.
“Ah! Estás aí, Fernando. Vem com a mãe, está na hora de ires dormir, deves estar cheio de sono, não?”.
Não falei porque me apetecia aquele silêncio no meu corpo, na minha boca, no meu pensar.
Quando a porta roncou gravemente e se abriu e se fechou, ao dar meia-dúzia de passos e entrar na cozinha vislumbrei a minha avó junto ao fogão com rosto pálido e um sorriso desvanecido e trémulo à luz de uma pequena chama do candeeiro de petróleo.
“Ó Beatriz, ainda bem que aí vens, faz-me um favor, arranja a lareira que as chamas estão murchas.”.
A minha mãe sorriu e afirmou que sim, que me ia só deitar.
Depois de um beijo terno, a minha mãe afagou-me os cabelos e saiu do quarto.
Escuridão total e o peso das mantas de fitas que pesavam mais do que aqueciam, e os murmúrios vindos da cozinha era sinónimo que a minha mãe e avó continuavam a fazer as filhós, e subitamente uma ternura imensa a inundar as trevas do quarto.
“Ó meu menino Jesus,
ó meu menino tão belo,
Só vós pudestes nascer
na noite do caramelo…”.
Cantigas ao ritmo do estender as filhós, do fritar as filhós como para espantar o sono, como para enternecer o Natal. E eu ali ainda acordado encafuado na cama gélida que já começava a amornar, sentia o espírito vivo do Natal. Não sei porquê, nem é para ser explicado, mas aquele miúdo sentia os olhos rasos de lágrimas.
Ái, ái ái. A ternura começava a transmutar-se em medo e, depois, em pânico. Queria-me mover, mas sentia os músculos paralisados, queria gritar, mas a língua não se movia. E aquele vulto real que eu não conseguia vislumbrar, avançava lentamente por cima das mantas na direção da cabeceira da cama, na direção da minha cabeça!
“Áaaaaaaaaaaaaaaaahhhhhhhhh, mãe! Mãe, depressa, um bicho, depressa…”
Só uns segundos que eram uma eternidade e, finalmente a minha mãe a entrar no quarto com a luz trémula numa mão. Vi-lhe o sorriso tranquilizador.
“Fora daqui! O que é que estás aqui a fazer.”
Um bichano, um gato a escapar-se pela porta entreaberta.
Nessa época as portas das casas das aldeias tinham as gateiras, uma abertura arredondada recortada na parte baixa da porta por onde os gatos podiam entrar e serem muito bem-vindos a casa a qualquer hora do dia ou da noite porque assim as casas ficavam ausentes dos ratos e outros bichos. Os gatos também tinham o hábito de por vezes se deitarem sob as mantas para se aquecerem e aquecerem os pés de quem estava aconchegado a dormir!
“Está tudo bem, Fernando. Dorme na paz de Deus.”.
Dei conta dos passos a ecoarem no soalho de madeira e a sumirem-se.
“Gatinho, gatinho, vem cá, eu não te faço mal, gosto muito de ti, vem cá.”.
Silêncio, senti-me desolado, tinha tido terror de um gato e naquele momento queria-o ali a fazer-me companhia. Fechei os olhos, tapei a cabeça com as mantas e tentei dormir.
“Miáu, miáu…”.
Sorri com gratidão, o meu melhor presente de Natal.
Acarinhei o gato até que os olhos se fecharam por si mesmos e eu adormeci.
Continuaram as estrelas na noite de todas as eternidades, a bailarem, a ensaiarem melodias para despertarem os homens para a realidade subjacente a todo o universo. Não sei, não preciso de saber, só preciso de ser inteiro, de estar no mistério da presença infinita como aquele menino daquele tempo, daquele Natal.
RITO DE NATAL
Rito de Dezembro
ou de Inverno
ou de frio,
regelado no rosto De menino,
mas de fogo no coração amedrontado
de mistério e escuro e encanto.
O fogo aquece só o rosto
porque o rabo está frio.
Canta o velho com voz trémula,
à roda da fogueira
há vozes e risadas e canções e filhós
e o menino esquecido
com coração de fogo e de encanto
vê o mundo
num vislumbro de eterno e de sonho.
Quero o frio de Dezembro
e o rosto regelado
de menino que já não sou.
Tenho medo do eterno
de acordar no súbito certo
que o passado, presente e futuro Somente são sonho.
Faíscas de fogueiras De todas as aldeias
são como vidas
tão fugazes, efémeras.
Queimo no fogo meu coração
em mil pedaços de estrelas,
queimo no fogo o medo do eterno
e redescubro a alegria de
viver a vida como menino que
sorri ao sabor do sonho.
Fernando Nunes