Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Viagens Pela Vida

Poesia e coisas do coração

Poesia e coisas do coração

Viagens Pela Vida

31
Dez18

A MINHA NOVA FACE

Fernando Nunes

Feliz ano :) Saúde e felicidade. Que todos os seres sejam felizes :) :)

 

A MINHA NOVA FACE

A minha face que
brilha em mim e em ti
como relembranças frescas ternas de
desenhos de crianças coloridos em folhas que
são despedaçadas ao vento em mil pedaços e
esquecidas
como coisa importuna da minha infância
queimado em bafo de noite quente
que me arde no ventre
sem rasto de memória.

A minha face
agora luminosa
fresca e húmida e peganhosa
no orvalho noturno
do meu rosto de mistério sem rosto
que sossega nesta terra crua e nua.

Ade renascer
em mim e em ti
a minha nova face
de rosto feito de infinito
que me queima agora a boca
com todos os alvoreceres
com línguas de fogo
que lambem e queimam
todas as eternidades
no mistério do infinito.

Fernando Nunes

sol a bailar no jardim do terreiro da saudade (3).

sol a bailar no jardim do terreiro da saudade (3).

 

28
Dez18

EXISTÊNCIA FUGAZ

Fernando Nunes

EXISTÊNCIA FUGAZ

O homem
vaivém
entre ânsias e ambições,
um sonho após outro sonho
move-se como cadáver ambulante
que carrega pensamentos e desejos.
Ás vezes sente
a exaltação  do êxito,
que se escoa da mente
com rasto agarrado de sofrimento.
Sorri ao horizonte num instante
sem ressentimento ou desejos e
no próximo momento já o pensamento
turva a luz do coração.

Dois ciprestes
crescem erguidos ao alvorecer e
o pássaro
esvoaça entre ramos e árvores.
Não pensa o pássaro no
passado ou futuro,
não sabe o cipreste que
foi pequeno e será grande e radioso.

O homem
olha a nuvem cinzenta e a branca e a negra e a brilhante e a baça e
mesmo quando vê a lua cheia
não vislumbra
o brilho estendido ao infinito.

Dois cadáveres descompõem-se
na terra nua e crua e
 sob a superfície do cemitério
há fulgor
de ouro e de silêncio  de
paz, a mesma paz
que nos dois corações habitou
e era o portal
para esta fresca paz de alvorada,.
Mas onde vagueia
consciência dos dois cadáveres?
Se não em sofrimentos
inventados
de fantasias de desejos e ansiedades?
Não sei, não sabes
ninguém sabe.
É aqui e aí e infinito
este único instante
de coração aberto
que eu e tu
podemos ser e permanecer
a presença serena
que é além
de todas as coisas
inventadas e não inventadas.

A flor abre-se a leste ou oeste,
a criança sorri só para ti,
Na cidade o passarito  chilra  entre teus passos agitados,.
Súbita sirene de ambulância
faz-te ver a fragilidade da existência.
Acarinhas a flor,
unes teus olhos ao riso da criança,
caminhas sereno ao ritmo melódico do chilrear do pássaro

Fernando Nunes

jardim dos limoeiros (1).JPG

 

26
Dez18

RITO DE NATAL

Fernando Nunes

RITO DE NATAL

Agora que relembro neste relembrar que vislumbra a memória não cá de dentro de um espaço confinado de um “eu” limitado, mas que vislumbra as recordações de um espaço mais aberto e livre como coração que a cada pulsação se vai abrindo à vontade para que todas as experiências sejam proveitosas tal qual como são… Enfim, embora o poema fale do menino esquecido e identificando-me com essa personagem de outrora cujo Natal traz-me tradições de uma aldeia da Beira Baixa em que na noite do dia 24 de Dezembro era ateado o fogo aos madeiros para que a fogueira ardesse noite dentro. O menino não era esquecido pelos vultos que à roda do braseiro em labaredas iam anunciando a chegada do Natal, porém o menino ficava esquecido de si mesmo não numa espécie de transe psicadélico de mundos fantasmagóricos. Era um esquecer-me de mim mesmo muito sóbrio, com os pés bem assentes na terra.

 

O fogo ardia alto brotando calor em contraste com a atmosfera fria, as pessoas brilhavam nítidas, alegres, sorridentes e bem expressivas à luz da fogueira tão intensa como se um pedaço do sol estivesse ali a ser consumido, mas num súbito algumas pessoas recuavam transmutando-se quase em sombras e eu ficava a ver e a interrogar-me muito subtilmente o que é que eram as sombras e as formas sólidas? E as risadas, as vozes mansas ou mais exaltadas tão expressivas, compactas e reais como se me vibrassem entre os dedos quentes pelo fogo, mas ao ritmo das fagulhas que subiam e estoiravam no ar gélido surgia uma voz rouca com olhos rasos de lágrimas que cantava uma melodia de boas novas. Então já não me pareciam as sonoridades assim tão concretas e palpáveis, a própria melodia ressoava como se viesse da obscuridade do pinhal ou de algum sítio misterioso longínquo e, simultaneamente, pulsava-me no ritmo do peito que subia e descia na minha respiração fria da noite e quente da fogueira.

 

As vozes iam ficando mais como ecos inexpressivos e os passos mais audíveis, mais puros porque pisavam a terra, o orvalho rasteiro encavalitado em algum mato ainda não crescido que os sapatos calcavam cuidadosamente porque a obscuridade ia-se convertendo em negrume denso. Ao virar a esquina do palheiro de paredes enrugadas de pedras de xisto, a frágil luminosidade que provinha das labaredas mais altas e ainda me conseguia oferecer perceção mínima dos que meus olhos iam esgravatando, instantaneamente sumiu-se.

 

Agora eu estava mesmo pequenino, encolhido algures não sei onde. Arremessei as costas de encontro à parede e levantei os olhos à imensa dimensão do firmamento, não havia coisa mais bela e mais grandiosa e mais misteriosa e mais sóbria do que a infinidade das estrelas e não vou acrescentar mais nada porque já foi tudo escrito, expressado sobre os astros que nos roubam o coração e nos tiram o fôlego.

 

Silêncio. Infinito. E nada para retirar, e nada para acrescentar, e nada para me interrogar, estava bem comigo mesmo e com tudo o que me circundava.

 

Que idade tinha eu? Em que ano se desencadeou essa vivência?

 

Espera, não quero o tempo, nem mesmo todas as imagens arquivadas na memória individual que delinearam esta personagem que está aqui a escrever, quero só o espaço, o espaço de criatividade de onde brota a escrita, donde brota a própria criação… Que vou designar de presença serena e infinita.

 

“Fernando, Fernando??!!”.

 

A voz da minha mãe a chamar-me à realidade da minha identidade limitada em memórias, em um físico, porém, mesmo ao regressar para próximo da minha mãe e da fogueira, a voz da minha mãe surgia-me como se fosse simultaneamente a voz de todas as estrelas. Não, não era nenhuma experiência mística, nenhuma experiência de júbilo. Somente estava ali, sereno como presença infinita, provavelmente mais “identificado” com esse mistério de ser infinito, de sentir-me o palco e não uma personagem do grande palco cósmico.

 

“Ah! Estás aí, Fernando. Vem com a mãe, está na hora de ires dormir, deves estar cheio de sono, não?”.

 

Não falei porque me apetecia aquele silêncio no meu corpo, na minha boca, no meu pensar.

 

Quando a porta roncou gravemente e se abriu e se fechou, ao dar meia-dúzia de passos e entrar na cozinha vislumbrei a minha avó junto ao fogão com rosto pálido e um sorriso desvanecido e trémulo à luz de uma pequena chama do candeeiro de petróleo.

 

“Ó Beatriz, ainda bem que aí vens, faz-me um favor, arranja a lareira que as chamas estão murchas.”.

 

A minha mãe sorriu e afirmou que sim, que me ia só deitar.

 

Depois de um beijo terno, a minha mãe afagou-me os cabelos e saiu do quarto.

 

Escuridão total e o peso das mantas de fitas que pesavam mais do que aqueciam, e os murmúrios vindos da cozinha era sinónimo que a minha mãe e avó continuavam a fazer as filhós, e subitamente uma ternura imensa a inundar as trevas do quarto.

 

“Ó meu menino Jesus,
ó meu menino tão belo,
Só vós pudestes nascer
na noite do caramelo…”.

 

Cantigas ao ritmo do estender as filhós, do fritar as filhós como para espantar o sono, como para enternecer o Natal. E eu ali ainda acordado encafuado na cama gélida que já começava a amornar, sentia o espírito vivo do Natal. Não sei porquê, nem é para ser explicado, mas aquele miúdo sentia os olhos rasos de lágrimas.

 

Ái, ái ái. A ternura começava a transmutar-se em medo e, depois, em pânico. Queria-me mover, mas sentia os músculos paralisados, queria gritar, mas a língua não se movia. E aquele vulto real que eu não conseguia vislumbrar, avançava lentamente por cima das mantas na direção da cabeceira da cama, na direção da minha cabeça!

 

“Áaaaaaaaaaaaaaaaahhhhhhhhh, mãe! Mãe, depressa, um bicho, depressa…”

 

Só uns segundos que eram uma eternidade e, finalmente a minha mãe a entrar no quarto com a luz trémula numa mão. Vi-lhe o sorriso tranquilizador.

 

“Fora daqui! O que é que estás aqui a fazer.”

 

Um bichano, um gato a escapar-se pela porta entreaberta.

 

Nessa época as portas das casas das aldeias tinham as gateiras, uma abertura arredondada recortada na parte baixa da porta por onde os gatos podiam entrar e serem muito bem-vindos a casa a qualquer hora do dia ou da noite porque assim as casas ficavam ausentes dos ratos e outros bichos. Os gatos também tinham o hábito de por vezes se deitarem sob as mantas para se aquecerem e aquecerem os pés de quem estava aconchegado a dormir!

 

“Está tudo bem, Fernando. Dorme na paz de Deus.”.

 

Dei conta dos passos a ecoarem no soalho de madeira e a sumirem-se.

 

“Gatinho, gatinho, vem cá, eu não te faço mal, gosto muito de ti, vem cá.”.

 

Silêncio, senti-me desolado, tinha tido terror de um gato e naquele momento queria-o ali a fazer-me companhia. Fechei os olhos, tapei a cabeça com as mantas e tentei dormir.

 

“Miáu, miáu…”.

 

Sorri com gratidão, o meu melhor presente de Natal.

 

Acarinhei o gato até que os olhos se fecharam por si mesmos e eu adormeci.

 

Continuaram as estrelas na noite de todas as eternidades, a bailarem, a ensaiarem melodias para despertarem os homens para a realidade subjacente a todo o universo. Não sei, não preciso de saber, só preciso de ser inteiro, de estar no mistério da presença infinita como aquele menino daquele tempo, daquele Natal.

 

RITO DE NATAL

Rito de Dezembro
ou de Inverno
ou de frio,
regelado no rosto De menino,
mas de fogo no coração amedrontado
de mistério e escuro e encanto.

O fogo aquece só o rosto
porque o rabo está frio.
Canta o velho com voz trémula,
à roda da fogueira
há vozes e risadas e canções e filhós
e o menino esquecido
com coração de fogo e de encanto
vê o mundo
num vislumbro de eterno e de sonho.

Quero o frio de Dezembro
e o rosto regelado
de menino que já não sou.
Tenho medo do eterno
de acordar no súbito certo
que o passado, presente e futuro Somente são sonho.

Faíscas de fogueiras  De todas as aldeias
são como vidas
tão fugazes,  efémeras.
Queimo  no fogo meu coração
em mil pedaços de estrelas,
queimo no fogo o medo do eterno
e redescubro a alegria de
viver a vida como menino que
sorri ao sabor do sonho.

Fernando Nunes

ruinas a entrada da silveira (1).JPG

 

25
Dez18

O CAMINHO

Fernando Nunes

O CAMINHO

É sentado
que aprendo o caminho,
mas não é sentado
que faço o caminho.

O caminho
é quando não caminho
e o caminho flui
como sorriso espontâneo
em mim mesmo.

O caminho
é o espaço ilimitado
do existir de todas as atividades.
onde sol
é refletido como sol.

Apanho uma flor
do chão
sem pensar
nos espinhos ou
nas pétalas sedosas

Sereno
na boca da nascente
não me deixo levar
por águas límpidas
ou águas turvas.

Tenho uma pedra
no sapato
velho e furado,
choro
não porque me dói o pé.
Choro
porque deito os sapatos fora.
No início dói-me
os pés.
A cada novo passo
há a frescura do novo
e aprendo a pisar a terra
e a senti-la como é.

Olho para trás
e não vislumbro
rastos
dos meus pés nus.
Olho para o futuro
e não vislumbro nada.
Os pés
caminham
frescos e renovados,
só um passo de cada vez.

Este poema
não é belo,
mas traz-me a frescura
subjacente
de cada verso.

donde brota
o teu pensamento?

Fernando Nunes

004.jpg

 

24
Dez18

NATAL SEM EGO E ENGRAÇADO

Fernando Nunes

NATAL SEM EGO E ENGRAÇADO

Festeja
com sorriso puro e de oiro,
o menino
que és tu hoje no
teu coração.
Deita fora
a tua farsa desajeitada
de adulto e
de eu sei, eu posso, eu mando.

Se abrires à meia-noite
a tua janela
e mesmo que não chova
deixa que a luz das estrelas
te lave as mágoas e
os pesos do passado.

Se cantares
à roda de uma fogueira
ardente de chamas lentas,
não temas
que as labaredas te queimem
o coração ou
que te esfarrapem a alma em mil pedaços,
porque
vislumbrarás num instante
o que há de ti
e o que há de mim
no latido de mistério estremecido na noite,
ou nos astros bailando na extensão de todos os séculos.
Sê sem medo,
sê menino
renascido no coração
tão aberto e leve
no infinito e no mistério
do teu sorriso imaculado

E eu fico só
com o latido do cão
como se aspirasse
o sofrimento de todas as crianças do mundo.

É Natal
que nos sintamos
em comunhão plena
neste instante que nasce e que morre
há sempre qualquer coisa de não sei o quê
a dizer-te, a dizer-me
que o caminho de ser feliz e de união
é aqui é aí
no “teu” e “meu” íntimo
como único coração em comunhão
de onde brotam todos
os instantes, os dias, os natais, os mistérios e eternidades e infinitos.

É Natal
abre a janela e vê
o teu sorriso no infinito,
que eu vou
comer uma filhó!

Fernando Nunes

pai natal.jpg

sentado no banco das escadarias do terreiro.JPG

 

23
Dez18

ALENTO

Fernando Nunes

ALENTO

As asas abertas
da memória
ateiam –se no silêncio.
Entre o instante e o próximo instante.
arde-me paz no coração
e esbarro-me  com fragância
de memória leve, tão leve
como fumaça
de ritual tibetano
e as imagens dissolvem-se subtilmente
sem único risco
do que foi júbilo ou sofrimento.

Vejo-me vaguear
como errante vagabundo
no espaço imaculado da consciência.
Quanto tempo assim, sem tempo, sem identidade fixa, sem aprisionamento ao pensamento e às coisas físicas?

Vislumbro a montanha
e respiro,
vislumbro  a face no espelho
e respiro.
Esqueço-me da minha respiração,
e então também
me esqueço do espírito e do coração e do teu sorriso e do sol e estrelas e liberdade.
E outra vez
a inventar, a inventar isto e aquilo.

Sorrio,
lembro-me do alento
e inspiro e expiro

Fernando Nunes

003.jpg

 

22
Dez18

FELIZ NATAL

Fernando Nunes

Feliz Natal

Natal, sinónimo de comunhão com a família, mas que este seja também um tempo de silêncio, de questionamento, de perguntas que no início podem ser incomodativas, mas que acabam por nos conectar ao nosso silêncio mais íntimo, mais verdadeiro, à essência do ser, à essência do cosmos. “Quem sou eu?”, “O que é a vida?”, “Donde venho e para onde vou?”, “Porque existe tanto sofrimento e será possível viver além sofrimento, com mais leveza e liberdade?”.

Deixa que as perguntas pulsem no teu coração, deixa que as perguntas te abram ao mistério e ao. infinito. :)

Feliz Natal :) :)

pai natal.jpg

 

20
Dez18

NÃO QUERO SER

Fernando Nunes

NÃO QUERO SER

Não quero ser
alvorecer
vestido de vermelho
com chispas de infinito.

Não quero ser
tic tac de
sincronismo perfeito
de relógio de cozinha que
à meia-noite me abre ao mistério.
Nem sequer
quero ser
as estrelas
que te enchem a face  de tanta paz.

Não quero ser
as tuas alucinações adolescentes
com sonhos, risadas e coisas de imortalidade
esbanjadas da noite até ao alvorecer.
Não quero ser
a roda de todas as eternidades
dançando no alento
do teu coração aberto.
Nem sequer
quero ser
esta personagem que tem um passado
e se diz com futuro e
rabisca este poema.

Não quero ser
universos paralelos
e mundos psicadélicos
que inventas e que te aprisionam
em paraísos inexistentes.
Não quero ser
o amor de um anjo ou
o terror de um diabo.
que oscilam entre dor e prazer.
Nem sequer
quero ser
a terna infância
tão imaculada e pura
dos teus olhos não nascidos.

Por último
quero ser
cosmo despido de
todas as máscaras subtis e pesadas.
Quero ser
melodia silenciosa
que te sussurra eternidade,
quero ser
poesia não nascida
e palco de teatro
onde te observo como terno dançarino
mesmo quando bailas desajeitado.
Quero ser,
Quero simplesmente ser sem nada ser.

Atrás de todas as coisas que existem
há a liberdade
do teu respirar
e no meu sorriso.
Mesmo quando nossos cadáveres
descansarem na terra crua
haverá o respirar e o sorriso
das coisas não nascidas e, simultaneamente, já são nascidas

.

.

Não quero ser

.

.

Fernando Nunes

sol a bailar no jardim do terreiro da saudade (1).

 

18
Dez18

E TUDO O QUE NÃO SOU, SOU

Fernando Nunes

E TUDO O QUE NÃO SOU, SOU

Tudo o que sou
e o que penso que sou
e tudo o que me engano
e digo que não sou,
sou eu e não sou eu.

Tarde cinzenta
encafuada
num peito e noutro peito…
Que é alegria
que é tristeza.

Esplendor ardente
acima de negrume de nuvens,
vislumbro-te além de meu vislumbro,
são olhos de infinito e de silêncio
que
em mim também é infinito.
Luzeiro , bailado de sol ,
fulgor por cima de
negrume que embacia
cidade de papel ou tão pesada,
mas eu quero-a leve, transparente como pensamento…

Melódica, bate a chuva
a à tua, à minha, a cada uma janela
e a todas as janelas desta cidade,
e é brilho de sol
nas cistas de lágrimas que o céu chora…

As gotas por instantes
suspensas nos teus lábios
ou em brilho de meus olhos,
escoam-me na rua e rio e céu e sol e galáxias

E tudo o que não sou, sou

.

.

Fernando Nunes

chuva na janela (1).JPG

chuva na janela (2).JPG

chuva na janela (3).JPG

 

17
Dez18

1995 EL CHORRO

Fernando Nunes

Uma frase que ao invocá-la te ecoe no coração para um estado de presença que vai além da lembrança de outrora, mas que te faz reviver um fragmento significativo da tua existência sem ficares aprisionado a esse pedaço de memória, porque tens a consciência que a vivência não foi o mais importante, porém a liberdade que te proporcionou.

 

Vou gritar até as palavras ecoarem em vales silenciosos e serenos da memória, “El Chorro! El Chorro oooo ooo oo o.”. Serena Fernando, respira, porque as escarpas rochosas, o desfiladeiro com o Caminito Del Rey não te vem arrebatar o sossego desta manhã luminosa de Dezembro. Há essa presença infinita que sustenta as montanhas, El Chorro, e que está aqui também presente como eternidade, mistério e infinito.

 

O Caminito Del Rey foi construído em 1905 no desfiladeiro para facilitar a ligação das montanhas de Chorro e Gaitanejo. O percurso de 3 quilómetros que em algumas zonas chega a atingir os 100 metros de altura por falta de manutenção foi-se degradando ao longo de décadas passadas. Só recentemente em 2015 o trilho suspenso na garganta de falésias rochosas foi recuperado.

 

Na época em que pratiquei escalada desportiva, El Chorro para a comunidade de escaladores desportivos, era sinónimo de muitas paredes rochosas, muitas vias para se escalar, muitos sectores com uma diversidade incrível de vias. Entre os muitos sectores havia o do Caminito Del Rey. Nessa época o caminho estava degradado e em muitas zonas sem gradeamento de proteção, sendo a largura do passadiço em alguns sítios do trajeto não mais de 2 metros. Porém havia riscos reais aos que se aventuravam pelo caminho, como por exemplo meia dúzia de metros onde o caminho tinha desabado e para transpor esses metros só existia um carril de ferro dos das linhas de comboios. A travessia era efetuada com uma mão na falésia e um pé ante o outro e ia-se avançando calmamente com o olhar repousado bem na horizontal, mesmo para os que não eram atormentados com vertigens não era conveniente olhar para baixo pois a sensação de vazio era imensa mesmo ali debaixo dos pés o abismo que surgia quase como se insuflasse atmosfera onde era permitido levitar. Apesar de ser possível minimizar alguns perigos como por exemplo a personagem que fazia a travessia levar uma corda de segurança que o escalador que ficava na extremidade oposta à da margem a alcançar ia controlando, nem todos adaptavam regras de segurança.

 

Pratiquei escalada desportiva entre os 24  e os 28 anos de idade. Nessa época já não via do meu olho esquerdo e a visão do direito não era perfeita. Recordo-me de chegar bem cedo à Guia, zona de escalada desportiva entre Cascais e o Guincho, e a minha visão estar nebulada como se estivesse nevoeiro, só passado algum tempo, talvez 30 minutos a visão começava a normalizar. A maioria dos fins de semanas passei-os a escalar em sítios como a Guia, Sintra, Arrábida, Montejunto, Salir e serra do Sicó próximo a Pombal, porém, ainda tive o privilégio de me deslocar uma vez a El Chorro em Espanha.

 

O início de uma viagem de cerca de 700 quilómetros que separava Lisboa do pequeno povoado de El Chorro, começou no alvorecer ainda envolto em trevas.

 

As conversas que iam afugentando o sono da noite não as relembro, mas vou dizê-las banais simplesmente para os quatro aventureiros acomodados no veículo triturarem um pouco da viagem que ia ser longa. Porém, ouve momentos que a conversa esmoreceu e só ficou aquele ruído de fundo do motor do automóvel como lembrança esgotada do panorama a deslizar através das janelas como se fossem telas virtuais. Melancolia não fatal, mas misteriosa que te aperta o peito ou a alma ou não sei quê de um momento aberto em que o passado parece desfazer-se e o instante ser leve, dissolúvel como nuvem translúcida. Esse sentimento como personagem no apeadeiro à espera do comboio, a gare solitária, uma ou outra voz fantasmagórica esticada e inaudível das esquinas obscuras e súbito cuspir elétrico de altifalantes a anunciar a chegada do comboio, estilhaçam o íntimo da personagem como se o mistério ficasse intenso e tudo incerto, era mais ou menos assim que me sentia com algumas interrogações muito subtis a diluírem-se no silêncio de fundo onde até o rosnar do motor surgia sereno.

 

Sou eu que estou a deslizar, em movimento, ou é tudo que se move em mim mesmo?

 

Não sei, nem devo ter realizado tal interrogação, porém, é um sentimento pelo qual já fui acometido quando viajo de carro e principalmente de comboio. É aquela sensação de que estou imerso em quietude e o panorama lá fora é que se movimenta em mim mesmo.

 

Para Fernando, não penses, não imagines, respira e esquece também a respiração. Deslumbramento a rasgar o horizonte, vermelho, fogo puro, fogo no sol prostrado em esplendor no alvorecer e no meu coração. Devo simplesmente ter respirado profundamente e subtilmente e sossegar na serenidade do novo dia a expulsar as trevas, porque êxtase sóbrio só nos dias vindouros, só no mistério, no infinito de quimera em El Chorro.

 

Na manhã de Dezembro em que principiei a escrita deste relembrar o sol era límpido, cristalino de oiro genuíno a pulsar alegria, hoje há melancolia húmida e peganhosa na atmosfera. Dependendo da tua perceção, poder-se-á afirmar que o amanhecer soalheiro  é um dia bonito, e a madrugada cinzenta envolta em trevas é um dia triste. Porque adoro sol, vou dizer-te que o dia de sol senti-o radiante e hoje esta manhã sinto-a tristonha, porém, existe esse ser silencioso no meu íntimo, essa presença serena que está além da alegria ou tristeza, que simplesmente se sente livre e em paz. Que é o sentimento que se realça hoje aqui nesta manhã “tristonha” e no dia “alegre” e em “El Chorro” e até em momentos de sofrimento, de ansiedade em que o desespero se esgotou e subitamente só serenidade e paz. Hoje tenho a consciência que esse estar-se bem com a vida independentemente das circunstâncias é possível, mas vislumbrando o passado sei que essas vivências sublimes em plena comunhão com a natureza, com o cosmo foram relevantes para que hoje continue a expandir a consciência para ser mais livre.

 

El Chorro no início não se revela assim uma visão súbita e brutal e ainda bem, porque quando chegámos depois de fazer a inscrição no pequeno abrigo de montanha , metemo-nos no automóvel e rumámos a umas paredes bem próximo do abrigo, porém o panorama embora espetacular adivinhava surpresa para o dia seguinte. Queria e precisava de dormir bem e, provavelmente, se me defrontasse nesse final de tarde com os sectores que na manhã seguinte me aguardavam, teria adormecido demasiadamente excitado.

 

Era Junho e o calor do sul de Espanha já se fazia sentir em El Chorro, por isso o abrigo estava praticamente vazio e o 1ºandar só nos alojava a nós, os quatro escaladores de Portugal.

 

A verdade é impossível ser descrita em palavras, esta não é uma verdade absoluta, final, porém, é preciso ir a El Chorro e, mesmo que não sejas um trepador de rocha, caminhares por alguns trilhos mais emblemáticos , não me refiro propriamente al Caminito Del Rey, aliás, se um dia decidires visitar El Chorro já poderás caminhar no Caminito Del Rey sem receios de caíres no abismo porque desde 2015 o Caminito Del Rey foi restaurado e  transformado em atracão turística, o próprio sector situado no caminho com vias a iniciarem-se com o vazio por de baixo dos pés estão inacessíveis a todos os amantes das paredes rochosas, isto é porque foi proibido escalar no caminho com pretexto que os escaladores incomodavam os visitantes com o material de escalada um pouco espalhado no passadiço.

 

Que horas são? Que horas seriam nessa madrugada que despertei num beliche do refúgio de montanha? Não sei, não quero o tempo, preciso de estar, de ser o próprio silêncio subjacente ao tempo

 

Há uma leve claridade emoldurada na parede atrás de mim, movo-me lentamente como se tivesse receio de acordar os meus companheiros, deslizo suavemente até me abeirar das vidraças. O alvorecer desperta-me para que eu invente novamente o universo. As falésias que vislumbro daqui, surgem-me como se brotassem da obscuridade vazia da noite e o sol estendido no topo da verticalidade irregular das paredes rochosas. É tudo mágico e faço no vidro, que começa a ficar embaciado do meu bafo, uns rabiscos infantis, talvez para confirmar o concreto, o real, ou não, ou as duas partes da existência que é simultaneamente real irreal.

 

Mochilas às costas, recomeço da caminhada rumo às vias com o João a escolher os sectores do primeiro dia de escalada e com paragem obrigatória no bar junto à estação do caminho de ferro.

 

Café forte com conversa tranquila, pausada. Vou assimilando o panorama que me circunda, que é sublime, mas não é só a beleza da natureza a realçar-se. Há uma espécie de Ino silencioso  que vibra no ar, como se estas escarpas rochosas tivessem contaminado o cérebro dos escaladores com êxtase e, consecutivamente, os escaladores retribuíssem o júbilo que lhes aflora do íntimo da alma, do coração, do que tu lhe quiseres chamar. El Chorro, é esta a atmosfera que se vive por aqui, nas conversas, nos sorrisos e no brilho dos olhos em sincronia com o sol.

 

Esta é uma escola de escalada desportiva que tem sido muito acarinhada pelos portugueses, isto é por ser um dos locais mais próximos a Portugal que têm uma diversidade incrível de vias, desde as de poucos metros de altura, até vias mais altas de vários largos. Já a dificuldade das vias, existe aqui de tudo e para todos os gostos, vias de inclinação negativa, até vias de fácil escalada, são mais de 1500 vias espalhadas por vários sectores. Porém, o que mais atrai a comunidade de escaladores desportivos é o ambiente que se vive aqui, a fantástica comunhão com a natureza silenciosa que nos conecta à nossa essência mais verdadeira do coração, os próprios percursos até a alguns sectores que têm algo de quimérico e, simultaneamente, de aventura. Respira-se por aqui muita pujança física, mas o objetivo principal da maioria dos escaladores de rocha não é conseguir escalar vias mais e mais exigentes fisicamente, existe uma espécie de estilo de vida na comunidade dos “fanáticos” da rocha. Se há escaladores que só pensam no grau de dificuldade, que treinam para o impressionismo, perdem o mais belo e essencial desta dança na vertical.

 

“Em Abril, quando estive aqui, também cá estava o Paulo e o Brasileiro.”.”

 

Os meus olhos repousados no horizonte, desviam-se com curiosidade para o rosto do João. O Paulo é um dos escaladores mais míticos de Portugal, tanto pelo estilo de vida que tem adaptado, tanto pela grande forma a escalar vias. Já viveu como errante por terras de Espanha, diz-se que arrendou o apartamento e, com a renda mensal, veio viver com a namorada para Espanha, iam acampando ou ficando alojado num refúgio dos sítios que disponham de refúgios de montanha e, quando o dinheiro era escaço, trabalhava um pouco até ter mais guito para escalar mais algum tempo e vaguear entre escolas de escalada. A imagem que me surge do Paulo, é uma espécie de hippi das paredes rochosas.

 

“O Paulo com o Brasileiro, já depois da meia-noite, meteram os frontais na cabeça e foram fazer o Caminito Del Rey, só que cada um levava para ir bebendo no trajeto, levava, levava uma cerveja de 1,5L!”.

 

Silêncio, nada de exclamações. Apesar da boa forma física da maioria dos escaladores e da expansão de consciência que esta prática proporciona, por aqui às vezes também se cometem excessos e adaptam-se práticas não muito condizentes com exercício físico, mas há um está-se bem, um está-se bem de respeito mútuo pelo outrem, isto é mesmo com os que discordam de tais práticas.

 

O ruído arrastado da cadeira da esplanada do café surge-me harmónico no contexto de toda esta paz deslumbrante, mas já não escrevo no presente porque ainda estou confinado às memórias, aos desejos e ao contornos do físico, do que designo de eu, do que a mente criou como identidade individual, separada, mas é atrás de tudo, inclusive da mente, antes da mente nascida que desconfio de um outro EU imutável. E relembro, às vezes como se relembrasse cá de dentro, outras vezes como estivesse além do eu, além da própria experiência, além do tempo e distância.

 

Piso o passadiço de ferro, este não é o do Caminito Del Rey, o passadiço tem gradeamento de proteção de ambos os lados, é o passadiço da ponte de ferro da linha de comboios que rasgam estas montanhas.

 

Do lado direito a linha do comboio, panorama brutal talvez a mais de 50 metros por de baixo dos meus pés, ao meu lado esquerdo o rio com o começo da garganta rochosa de onde de um dos lados tem início o Caminito Del Rey. Silêncio compacto, sólido e simultaneamente subtil, águas lá no fundo esverdeadas e serenas.

 

Caminhámos emudecidos, embora os nossos passos não ecoassem, sentia-os como se ecoassem no abismo, no vazio e, subitamente, como se essa vastidão fosse expansão da minha própria consciência. Mesmo no final da travessia da ponte que tem aproximadamente talvez, talvez porque a memória não me dá essa informação com exatidão, talvez 100 metros, passa um comboio que faz estremecer levemente a estrutura de ferro. OK, nada de adrenalina, o caminho na ponde é seguro, gradeamentos estáveis e altos.

 

Após a travessia, estagnámos os quatro, ali mesmo à saída da ponte surgia-nos o Caminito Del Rey, tão humilde, tão simples e tão ingénuo. No máximo com 2 metros de largura, sem gradeamento de proteção como se flutuasse, como se levitasse e lá a mais de 100 metros a baixo o rio. Era quase como convite irresistível, uma espécie de sussurro que afirmava que nada de trágico podia acontecer, que talvez ali já se vencesse a gravidade e que flutuássemos. Ora não sei se duvidei da solitude da vida, não sei se me interroguei, provavelmente não, não nada, somente estava ali com toda a minha perceção, com todo o meu ser.

 

A intenção não era irmos escalar vias no sector do Caminito, porém a minha irmã a confirmar-me a ~existência como concreta, real, “Nem penses! Nem um pé no caminho! Estás louco, sabes que vês mal, não é?”.

 

Fiquei com a minha irmã a ver o João e a Cristina a afastarem-se alguns metros, só até o passadiço subitamente desabar no abismo, uma meia dúzia de metros cujo o caminho era reduzido a um único carril de ferro. O João e a Cristina retrocederam porque nosso objetivo como disse não eram as vias no desfiladeiro, o João simplesmente tinha ido mostrar à Cristina como era o início do trajeto de aventura na frágil trilha cravada na rocha das paredes fantásticas.

 

Urgência, urgência queria chegar rapidamente ao sector escolhido para escalar, precisava de escalar, precisava de me sentir leve, de dançar ao ritmo sincrónico do silêncio e da minha própria respiração, mas ainda existia o restante do percurso para caminhar. Afinal já não tinha urgência. Entrámos pelas escarpas adentro, isto mesmo porque penetrámos num dos muitos túneis que rasgam as montanhas para que os comboios as possam atravessar. Apesar de quimérico o percurso faz-se com segurança, isto é porque entre as paredes do túnel e da linha de ferro há uma distância de aproximadamente uns 2 metros e os comboios circulam a baixa velocidade e, ao entrarem nos túneis, apitam como sinal de alerta aos caminheiros.

 

Depois das trevas dos túneis, a desembocarmos numa luminosidade esplêndida, escarpas de ambos os lados, não vias muito altas, entre os 15 e 25 metros de altura com as plaquetes a luzirem. O sector estava silencioso, solitário, nem um único tilintar de um mosquetão.

 

O João ia-nos dizendo o nome das vias e o grau de dificuldade. Aqui na desportiva a filosofia de escalada é diferente da escalada clássica. A clássica pode-se dizer que é uma prática de aventura, de em maior ou menor grau, é uma escalada com riscos evidentes principalmente porque as proteções são fixadas na rocha conforme se vai realizando a subida, por exemplo fixas em fissuras e, por isso, existe a possibilidade de em caso de queda a proteção soltar-se da rocha. Na desportiva, os riscos são minimizados porque as vias são previamente equipadas com plaquetes, ou seja a via é estudada, ensaiada com a corda por cima e, posteriormente, é equipada para a eternidade porque a rocha é furada e as plaquetes ficam aparafusadas à parede. A via é então batizada e, depois, de alguns escaladores experientes a terem encadeado é definitivamente classificada com um determinado grau de dificuldade. Obviamente que embora mínimos, mesmo na desportiva há alguns riscos como algumas vias mais expostas ou quando as proteções ainda estão muito próximo ao solo e o escalador está a passar a corda no mosquetão colocado na plaquete, neste caso em algumas vias se houver uma queda do escalador por ter demasiada corda larga e estar próximo ao solo pode ir embater no chão.

 

“Ainda existem aqui manchas de sangue, foi nesta via que aconteceu a tragédia da última vez que estive cá.”, - o João falava e esticava o braços na direção da segunda proteção da via. “Foi um inglês, era a esposa que lhe estava a fazer segurança, ele já tinha a corda esticada estava mesmo a passar a corda no mosquetão quando caiu veio embater ali mesmo, ainda lá se encontra manchas de sangue. Disseram-me no refúgio que um escalador desatou a correr até ao café, chegando lá telefonou de imediato para os socorristas, veio um helicóptero que resgatou o Inglês, mas quando chegou ao hospital já ia sem vida.”.

 

Silêncio. A plenitude, a grandiosidade da vida e, simultaneamente, a fragilidade como lembrança da preciosidade da existência.

 

Caminhámos em silêncio. Havia algo de ingénuo e infantil na leveza e luz daquela manhã, talvez a ternura de todos os sorrisos de todas as crianças do mundo suspenso no imutável, não sei.

 

“Fernando, como é? Queres tentar esta via à frente?”, - a minha irmã observou o João e depois a via. – “Não há crise, primeiras proteções próximas umas das outras e além disso até a terceira proteção são presas enormes, a via é fixe para ti, inclinação negativa, mesmo para tipos cheios de força como tu.”.

 

A minha irmã, observou-me a mim e depois novamente a via como que a avaliar algum risco, ou não sei exatamente o que lhe ia no pensamento, mas não disse uma única palavra.

 

Tive a consciência que não havia qualquer problema, embora ninguém soubesse no percurso até às vias os meus olhos tinham turvado, o que às vezes sucedia porque já tinha problemas graves de visão. Estava próximo à rocha, à via e conseguia vislumbrar a primeira proteção a luzir, a segunda já não a via, mas pensei que depois de proteger a primeira com certeza conseguiria ver a segunda e por aí a diante.

 

Respirei profundamente, comecei a calçar os pés de gato (sapatos muito apertados com sola de borracha muito fina) e amarrei a corda no arnêse e, por último pendurei os mosquetões.

 

Primeira proteção, segunda proteção e uns 6 metros separavam-me do solo, só mais 10 metros, pensei. Estiquei os braços, meti uma mão de cada vez no saquinho de magnésio, respirei profundamente e comecei a trepar. Embora presas razoáveis sentia a gravidade em cada músculo do corpo que instantaneamente ia rodando, posicionando-se ora frontalmente, ora lateralmente, de forma a ter mais equilíbrio para progredir com o mínimo de força possível. Dureza, mas era dureza era preciso bastante força juntamente com técnica. Silêncio compacto em sincronismo perfeito com a minha respiração às vezes soprada e os mosquetões a tilintarem a cada nova proteção. Os dedos a quererem saltar das presas, não havia pensamentos de queda porque a concentração para superar os últimos passos próximo ao topo exigia superação física e mental.

 

“Vai lá, tu consegues, vai lá está quase.”.

 

Vozes pela primeira vez, a confirmarem-me que eu estava do linear das minhas forças e, simultaneamente, a dizerem-me que existe sempre mais um pedaço de força no íntimo do ser.

 

“Óooooo, treta…”

 

A parede deslizou rapidamente defronte da minha visão, o coração disparou e, depois de um leve esticar da corda a amortecer a queda, fui puxado de encontra a parede onde de imediato os meus pés se firmaram com suavidade.

 

A 2 metros do topo faltaram-me as forças e dei uma queda de 4 metros. Enfim, recuperei forças e voltei à via até a escalar ao topo. Não a tinha encadeado, mas sentia-me em paz, sereno e satisfeito.

 

Os meus pés a tocarem novamente solo firme e as lágrimas a deslizarem-me nas faces, lembrei-me de que estava com a visão turva e devo ter tido a consciência de que um dia poderia ter que dizer adeus às paredes rochosas.

 

EL CHORRO

 

Num tempo vindouro ,
ficar ciente da respiração e
do último instante.
E sempre consciente
renovar toda
a verdade
entre um instante e o próximo,
o absoluto revelar-se-á
imutável, silencioso, sorridente e infantil.
Por diversão,
com meu sopro
renovar-se-á
a vida inteira
e pela última vez
regresso a El Chorro
escalo uma via ao acaso
e sento-me numa pedra silenciosa
à espera da morte?
À espera do absoluto para mim,
onde me liberto,
onde te abraço sem te abraçar,
onde te sorrio sem sorrir.
Onde estou silenciosamente aqui e além,
onde estou subjacente a todas as eternidades

Dança na vertical,

É vida como quimera,
talvez mais próxima
do absoluto,
Não sei, não sei

Fernando Nunes

EL CHORRO (Junho 1995)0005.jpg

EL CHORRO (Junho 1995)0010.jpg

EL CHORRO (Junho 1995)0014.jpg

 

Pág. 1/3

Mais sobre mim

Subscrever por e-mail

A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.

Arquivo

  1. 2019
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  14. 2018
  15. J
  16. F
  17. M
  18. A
  19. M
  20. J
  21. J
  22. A
  23. S
  24. O
  25. N
  26. D
Em destaque no SAPO Blogs
pub